Nota introdutória:
Este texto foi escrito pelo poeta Fernando Soares, a propósito do encontro de Música e Poesia Galaico-portuguesa (Igreja de São Nicolau – Marco de Canavezes – em 06 de novembro de 2021).
Composição de Fernando Soares
A noite fizera-se fria pela ausência da luz que durante o dia o sol nos prendou como afago de lareira e mantinha nos joelhos.
A frescura puxava e fazia chegar ao nariz, tapado com vergonha da cara tapada e por igual em todos, o aroma a alecrim que ali estava sem ter escolhido ali estar.
Do rio, que preguiça, brilhavam luzes de tons vários: umas paradas espreitando, outras passando rápidas com a velocidade de quem, sobre a ponte, passava sabe-se lá para onde.
Eram vários os grupos que estando ali aguardavam que a porta do templo deixasse o estar fechada e se abrisse para a oração, não a oração orada como é tido em costume, e mandam os livros de orar em suas leis.
Como dito, a noite se comportava de fria o que dilata em seu parecer a fé dos que aguardavam e que ali foram idos para cumprimento do que ali os levou.
No seu tempo certo a porta se abriu e um facho de luz saiu de por ela como que dizendo: bem vindos os que vierem por bem. E entraram os que ali foram para entrar e entraram. Apenas se via o reluzir de olhos reluzentes e rostos mascarados de matizes vários. Em outros tempos se diriam que assim estavam por vergonha ou padecimento, mas tal não o era como parecia.
A todos recebeu a luz com a satisfação de quem recebe parentes próximos e parentes de parentes.
Apesar de pequeno em sua dimensão geométrica, o templo cresceu em sua alma grande que recebia quem ali ia desde há séculos e séculos, ámen. Se viam cicatrizes em suas paredes que o homem e o passar dos tempos lhe fizeram. Eram cicatrizes esbatidas mas que por isso eram como vozes vindas do longe dos tempos que pareciam dizer: entrai, entrai e não temais.
Então, sem anúncio, como que recebendo a todos, uma voz melodiosa de flauta ecoou pelas paredes de pedras vivas. A voz bailava paredes acima e abaixo e entrava nos ouvidos dos que ali entraram para ouvir.
Depois e por igual sem anuncio soaram palavras elas também bailadoras e de cores várias e sentidos por igual fazendo calar de silêncio até o vento que pela porta espreitava como só o vento sabe espreitar.
E assim, com a música e as palavras bailando o tempo ia passando mas o frio ia chegando e beliscando cada vez mais. Seria o vento ou uma prova da fé aos que haviam entrado, ou tem a fé um tempo preciso e não para sempre?
Cada qual em seu jeito se ajeitava em seus agasalhos e se enroscava para o frio esfriar menos.
A noite apertava lá fora de frio e sobre as águas do rio poucas luzes passavam agora e passando sabe-se lá para onde.
Num tempo ele também certo, chegou aos narizes tapados como já dito e trazido talvez pelo vento um aroma leve e perfumado que se tornou saboroso em seu cheiro de glicínias assim pareceu de início.
Em outro tempo e chegados não se soube de onde, ninguém dos presentes o soube ou se soube se calou, começaram de esvoaçar com leveza de pluma umas formas de forma muito antigas de onde saíam pequenas nuvens quentes de calor e sem se saber como, todas as mãos de todos que ali tinham ido de boa fé e de por bem, receberam cada um uma dessas formas fumegantes e se viu que era nada mais que água perfumada, límpida como o sol e ofertada a todos e cada um.
Seria benta essa água, assim se pensou, ou apenas alguns o pensaram. Baixaram as cortinas que escondiam o rosto de cada uma e um e a água ia sendo cheirada, provada, mastigada e depois deslizando para o dentro do corpo numa quentura tão nova de sabores vários, sabores antigos, assim parecia ser, como convite de renovar votos que ali levou os que lá estavam e se olhavam de espanto e sorriso largo nos olhos que viam e se viam.
Que fonte daria tal água perfumada de sabores calorosos ou que divindade tal oferenda serviu. Não se sabia ou se sabia ninguém o disse.
Uma voz se fez ouvir, desvendando segredos daquelas pedras e histórias se contaram e ouviram por igual, se falou de irmandade entre os homens e mais música e mais vozes subiam pelas paredes e caiam como neblina de espanto sobre todos, ali naquele lugar tão novo de tão antigo e se disse, que assim era, que os perfumes que aqueceram cada um eram ervas da nossa infância pura como aquela água quente, agora benta, em seus sabores que fazia aumentar a fé de estar ali, mesmo que de fé se não falasse aos que ali estavam porque tinham de estar.
Infusões do mato! Sussurrou uma voz com rugas em seu falar Misturas do românico se ouviu também. Românico?
Românico eram aquelas pedras. Infusões balsâmicas e Infusões florais, assim foi dito por voz que pareceu vir de debaixo das pedras ou de um outro lado com sorrisos misturados. Infusão estival.
Todos que ali estavam olhavam para todos os lados em busca de quem falava, mas nada se via.
Mística! Mística? Era de verdade e subtil. Sim sim, Infusão subtil. Alguém com voz doce e fresca disse: montanhas de sensações.
Montanhas de sensações? Todos ouviam estes segredares e como que dirigidos por uma batuta que se agitava dentro do peito de cada um, todos disseram em coro: montanhas de sensações. E deram-se sorrisos largos nas caras tapadas.
Foi assim que foi. Um lugar de fé para quem chega por bem, se transformou em lugar de oferenda da mãe natureza. E assim aquela noite fria se transformou em quente e o rio testemunhou isso e se assim foi, assim teria de ser e assim se tornou naquela verdade que faz de cada dia e cada noite um tempo de irmandade com o tempo antigo tão à nossa mão.
Na saída todos iam em seu passo certo e quente subindo o empedrado do caminho e a cerca de meio, olhavam para o lado que era o esquerdo e faziam no silêncio de cada qual o pedido de proteção no regresso a casa.
O Senhor da Boa Viagem na sua santidade de santo crucificado a todos atendia com um sorriso gravado na pedra que o tempo não come.
Foi assim que foi, e se assim foi, assim tinha de ser e sendo assim, que se diga Ámen.
Fernando Soares