Nota introdutória:
Este texto foi escrito por Ana Bela Cabral, CEO da Escola de Copywriting® na ABC Traduções / ABC Copywriting / Eleva.
Estávamos em 2048 e o Natal aproximava-se
Ivo está de regresso a casa depois de mais uma corrida no parque higienizado WP3. Estes momentos em que lhe é permitido sair de casa e olhar para além das suas 4 paredes são uma bênção. Não lamenta o custo do aluguer da faixa horária, 3 vezes por semana.
A corrida permite-lhe pôr as ideias em ordem, mas levanta, por vezes, algumas interpelações, como quase sempre acontece nesta altura do ano. Há já algum tempo que se tem vindo a questionar sobre como poderia ajudar os residentes do bairro BOX 27 (conhecido por B.B.27) a passar um Natal mais… humano.
Faz-lhe confusão. Faz-lhe confusão toda aquela gente enfiada em caixas individuais de descontaminação. Faz-lhe confusão imaginar que, na noite de Natal, as pessoas estarão separadas por acrílicos, a falar através de microfones…
Vinha entregue aos seus pensamentos quando, ao chegar ao seu bairro, começa a ouvir o inconfundível restolhar do papel manteiga. Soube logo de onde vinha: da pérgula da Dona Isabela.
– Olá, Dona Isabela! Como anda?
– Ó Jovem fale lá mais alto que não o ouço com essa coisa à frente da boca!
Ivo retira a máscara ao certificar-se que a distância de segurança está assegurada.
– Estava só a perguntar como anda a Dona Isabela!
– Vou andando, Caro Ivo. Mais velha um dia.
– Está a tratar das suas ervas, certo?
– Estou a separá-las por embrulhos de papel, agora para o Natal.
– Maravilha, Dona Isabela! Admiro essa sua obstinação em se manter dinâmica!
– Com a minha idade, quer dizer…
– Nada disso, Dona Isabela, a Senhora é uma jovem! Muito mais jovem do que eu, acredite!
– Só se for em idade digital, meu Jovem!
– Então, conte-me lá o que secou este ano?
– O costume: erva-cidreira, limonete e hortelã.
– Colheu-as quando?
– Num dos poucos dias de sol que houve em outubro. Estava a ver que não tinha colheita este ano…
– Tem de ser em outubro?
– Tem de ser antes da floração e têm de estar secas. Gosto dos finais de manhã, quando já não há vestígios do orvalho matinal.
– E seca-as ao micro-ondas?
– Nem pensar! Gosto de métodos mais “ancestrais”, meu Jovem! É na cave mesmo; o local mais seco da casa. E sem luz.
– Isto tem toda uma ciência, Dona Isabela! E a produção, foi boa?
– Muito mais do que necessito para o ano todo e para as minhas prendinhas. Correu bem.
– O que faz ao excedente? Tenta escoá-lo na Internet?
– Ah, ah, ah! Essa tem piada, Caro Ivo! Quem quer as minhas ervas?!
– Ora e porque não?!
– Não me parece, Jovem…
– Posso comprar-lhe algumas?
Ivo começava a traçar um plano na sua inquieta cabeça…
– Qual comprar, qual carapuça! Eu dou-lhas! Quantas quer?
– 18 sacos. Arranja-me?
Essa era a última contagem oficial do número de residentes do Bairro Box 27.
– Vamos a isso. Dê-me aqui uma ajuda, ó Jovem!
Ivo coloca de novo a máscara e junta-se à Dona Isabela, na pérgula.
No dia 24 de manhã, Ivo saiu de casa bem cedo e dirigiu-se ao B.B.27. Depositou um saquinho de papel no tabuleiro de entregas, à porta de cada Box. Em cada um dos sacos, agrafou uma pequena nota que continha o modo de confeção das infusões e a seguinte mensagem:
“Caros Residentes,
Hoje é dia de Natal e, como tal, lembrámo-nos que vos cairia bem uma infusão bem quentinha!
Depositámos um saquinho à porta de todas as boxes e lançamos-vos um repto: vamos todos beber uma infusão às 23h00?!
Dona Isabela e o seu jovem vizinho inquieto”
Às 23h00 em ponto, Ivo sai de casa artilhado para o frio e toca à porta da Dona Isabela. Tinha-a convidado de véspera para “uma surpresa”.
– É aqui perto, não se preocupe Dona Isabela. Não demoramos nada.
– Veja lá, Jovem, que eu já não tenho idade para desportos radicais!
– Nada disso, Dona Isabela, vamos ver as suas ervas!
– As minhas ervas?
Estavam nesse momento a aproximar-se do B.B.27. Ao abeirarem-se das boxes, diante dos seus olhos, 18 pessoas bebiam uma infusão, conversavam e riam efusivamente, brindando com as suas chávenas.
Ivo ficou radiante. A Dona Isabela tentava disfarçar a lágrima teimosa que deslizava no seu rosto enrugado.
2048 foi o primeiro ano desta tradição que perdura até hoje.